#062 Escrever sobre videojogos, por Tiago Sá
"Os media de videojogos não estão moribundos, mas encontram-se em isquemia, com todos os redatores a competir por um lugar ao sol."
[Nem toda a gente tem paciência para estar online. E acredito que Tiago Sá seja uma dessas pessoas. Não o encontro em qualquer lado para além da sua presença no Twitter (ou a rede social X para ser mais correto). Aliás, também o encontro e o destaco na minha newsletter quando publica os seus excelentes textos no GameForces, um site pequeno da nossa praça, mas com um bom conjunto de autores onde Tiago Sá é um dos mais notáveis escritores deste canto da internet onde se fala (e bem) sobre videojogos. Não conheço o Tiago pessoalmente, tal como muitas outras pessoas que partilham a mesma atividade que exerço, nem o conheço (ou, pelo menos, saber quem é) como outros pela sua forte presença nas redes sociais. E não são só essas pessoas que têm algo a dizer, não é por terem alguma notoriedade entre a comunidade que têm mais ou menos importância do que outra que está mais escondida. Tiago Sá é um académico, ligado à área da medicina, que adora literatura e isso sente-se nos textos que escreve, percebe-se bem que cada palavra é cuidadosamente escolhida para um resultado final fantástico. Não foram poucas as vezes que achei ser ele o autor das melhores análises escritas por cá de um determinado título, como por exemplo Another Code: Recollection. Fiquem com o texto de Tiago Sá, que tem, certamente, uma palavra a dizer sobre a sua experiência a escrever sobre videojogos.]
Antes de dar a minha pequena contribuição em relação à escrita sobre videojogos, gostaria de agradecer calorosamente pelo convite que me foi estendido pelo Filipe Urriça – um membro da comunidade que me faz sentir muito mais ouvido e compreendido do que o imperscrutável número de cliques, e que torna mais confortável e convidativo o consumo de excelentes textos de jornalistas portugueses através da presente newsletter. Porém, o sentimento lisonjeiro surge envolvido em inquietação avassaladora, na forma de uma questão: o que posso acrescentar à discussão?
Na conjuntura atual do mercado de videojogos, uma afirmação veemente, astuta e ponderada não é mercadoria exótica. Um só instante no tempo pauta um novo avolumar de milhares de interações online, cada qual com uma contribuição subentendida ou estampada para o intercâmbio de experiências e de informação (ou desinformação). Atualmente, tal não passa necessariamente por publicações jornalísticas ou fóruns recônditos: pode ser uma nova página objetiva e minuciosa na Wiki de uma franchise, ou um clipe viral que diz mais do que mil palavras sobre o polimento ou potencial lúdico de um mundo virtual, ou uma nova thread no Twitter a concisamente expor os desenvolvimentos de uma polémica atual, ou uma crítica exaustiva e apaixonada de uma experiência no YouTube.
Basta molharem os calcanhares nestes tópicos de quando em vez nas redes sociais para moldarem o algoritmo e serem expostos ao incessante e aparentemente infinito conteúdo opinativo e (pseudo) jornalístico a ser produzido na área. O discurso sobre videojogos é pulsante e universal; não há nenhum tema suficientemente nicho ou complexo para escapar ao escrutínio dos jogadores. Contudo, perante este avassalador número de personalidades a pensar e discorrer bem sobre gaming, fui invadido pela noção de que sou mais uma voz numa multidão barulhenta, na qual é demasiado fácil ouvir ruído no lugar das minhas palavras individuais e entrar numa crise de identidade e de propósito neste hobby que escolhi.
Ignorando a cobertura de notícias, que para a maioria dos sites pouco mais implica do que propagar os sinais de fumo observados noutras colinas, é nas análises que este problema se concentra. São artigos reacionários, relativamente fáceis de estruturar e redigir, e são os conteúdos que mais facilmente capturam a atenção do público-alvo. Os artigos de opinião ou investigação, as entrevistas e a cobertura de títulos obscuros são mais estimulantes e inovadores; porém, não só se revelam mais trabalhosos e morosos, mas também dependem geralmente de uma audiência interessada e alcance pré-estabelecidos. Portanto, pouco espanta que as análises sejam o pão de cada dia dos jornalistas de videojogos, especialmente em Portugal. Todavia, o pão é um alimento preparado por todos para todos, e seria desvirtuado e prepotente qualquer site ou autor acreditar que as suas fornadas são a referência.
Aliás, as novas fontes e formas de crítica evidenciaram que os redatores raramente são autoridade nos conteúdos sobre os quais versam. Os títulos individuais que, para os profissionais da imprensa, são usualmente estadias de menos de um mês, para outros criadores de conteúdo são a devoção de meia vida. Caso um redator faça uma avaliação rudimentar do balanço de um jogo competitivo, sujeita-se à chacota coletiva da base de fãs dedicada. Se um autor se debruçar sobre o novo capítulo de uma série de nicho com que não interagira previamente, não tem como equacionar nas suas apreciações a pesada bagagem da franchise, que é conhecimento geral na sua comunidade Reddit.
Adicionalmente, a impersonalidade do formato escrito, bem como as aparentes contradições entre posições numa mesma plataforma (que partem, na verdade, de diferentes membros dos plantéis excessivamente recheados dos maiores sites), contribuem para uma segregação entre “jogadores” e críticos. O distanciamento resultante é cartografado num vasto campo acidentado e minado, onde o mais pequeno deslize é suficiente para estigmatizar um grupo tratado como “farinha do mesmo saco”. A performance desastrosa de Dean Takahashi (GamesBeat) em Cuphead, o ataque de Laura Dale (Kotaku UK) a Persona 5 decorrente de um erro grotesco da sua parte, são lapsos infrequentes que, somados aos delitos de certos sites reincidentes que procuram obter cliques a partir de incompetência calculada, erodem lentamente a confiança na indústria.
Não tenho uma solução para este berbicacho, nem sequer acredito que a existência da imprensa tradicional esteja em causa. Apenas saliento que cada afirmação que proferimos tem um peso e imputabilidade associados e que há que perceber o nosso propósito e saber jogar com os nossos trunfos, priorizando as valências que prestigiam e mantêm consolidada a posição das análises escritas.
Por exemplo, não é motivo de vexame não partilharmos o conhecimento dos fãs mais acérrimos das séries. Há uma razão para a média do Metacritic ser a primeira grande métrica empregue para julgar uma experiência recém-lançada, representando uma aproximação relativamente fidedigna da apreciação dos títulos pelo jogador médio. Mas não é só o jogador no centro da curva que beneficia desta cobertura: um texto bem projetado investe em linguagem acessível e numa seleção rigorosa de informações para proporcionar a novatos uma introdução clara ao produto e a veteranos um aprofundamento subsequente que, não esgotando o tema, enquadra o título no paradigma vigente do género - conferindo à publicação um apelo quase universal, raro em discussões mais íntimas.
Se estes princípios legitimam as análises como um todo, não justificam a quantidade colossal destes artigos. Os media de videojogos não estão moribundos, mas encontram-se em isquemia, com todos os redatores a competir por um lugar ao sol. Como foi elaborado por Jorge Loureiro, a otimização para SEO, a corrida pelo fator novidade, a presença nas redes sociais e, acrescento com ceticismo e desprazer, o ocasional sensacionalismo e clickbait são males necessários para a sustentabilidade dos empregos neste setor. Nas plataformas não remuneradas, como infelizmente é o caso da maioria em Portugal, os cliques pagam-nos em gratificação pessoal… uma recompensa ainda assim insuficiente para validar o oxigénio que eu consumo num espaço tão claustrofóbico.
É possivelmente por esta insatisfação que, gradualmente, me distanciei da objetividade nas análises. Os textos primariamente objetivos são essenciais, sobretudo no período de lançamento. Com o fim da E3 e a presente escassez de demos jogáveis, é nestas publicações que o jogador encontra a primeira apresentação independente e holística do jogo, idealmente isenta da influência dos produtores e alheia à direção calculada do marketing. Se desenvolvidas com rigor, capacitam o leitor para tomar a decisão informada de adquirir ou ignorar o título.
Contudo, estes artigos têm um substrato invariável e limitado em função do nível de exaustividade definido. Ler dois ou três destes textos é elucidativo; ler mais é entrar numa casa de espelhos, com a mesma imagem a reverberar em todas as paredes, mesmo considerando as diferenças substanciais nos estilos de escrita. Por outro lado, do texto até à pontuação atribuída ao jogo, há necessariamente um processo de tradução para a dimensão do opinativo. Se o corpo da análise não sustentar a classificação, o leitor é indevidamente convidado a estimar a opinião do redator com base na sua própria apreciação dos pilares mecânicos descritos, num salto incongruente que pode originar uma dissonância desconcertante no final da leitura.
Não dispondo dos NDA que possibilitam a preparação célere deste tipo de análises e reconhecendo o envolvimento inevitável da subjetividade, optei por abraçá-la, numa peregrinação que começou há meia década e não tem fim à vista. Aprendi a desenterrar as sensações evocadas por cada componente de um jogo e, mais tarde, aprendi a usar humor e metáforas para explicar estas mesmas sensações e dar forma à minha experiência pessoal. Aprendi a experimentar construções heteróclitas, dobrando a gramática na dose certa para conferir fluidez e emotividade ao texto. Aprendi a pesar na balança todas as componentes de um produto e a ignorar as que não afetaram a minha apreciação do mesmo. Aprendi a praticar simplicidade na exposição mecânica, sem cair no reducionismo.
Tudo em serviço de expor uma opinião, ancorada nas mecânicas do jogo e fundamentada de modo que a minha posição seja compreensível mesmo para indivíduos discordantes, mas ainda assim uma opinião. Cada novo rascunho reflete uma imagem mais cristalina da minha perspetiva, num percurso que teria sido impossível sem a troca de ideias e feedback construtivo com os restantes membros do GameForces e sem constantes olhares sorrateiros ao trabalho de outros colegas de ofício. Nenhuma destas etapas traduziu progressão da qualidade dos meus textos, mas sim a busca pela minha voz e a conquista de serenidade no papel de portador de uma perspetiva e estilo de escrita intransmissíveis.
Mesmo assim, o caminho para trilhar é longo, algo que me foi evidente na preparação deste texto. Tenho dificuldade em discutir em abstrato, e não consegui focar-me numa só das milhentas cabeças reluzentes que compõem a hidra que é a “escrita sobre videojogos”. Só o staff da Google sabe quantos parágrafos, pontos-chave, e piadas despropositadas do 1º de abril foram abandonados no rascunho do Docs.
Forçando uma conclusão numa reflexão desconexa e aberta, resta-me assinalar: A minha jornada pessoal acarretou o progressivo reconhecimento de que cada texto produzido sobre videojogos pode ser lido como um fim e não apenas como um meio, um corolário que encaro como implícito no trabalho nobre de pesquisa, seleção e partilha de artigos que o Filipe executa nesta newsletter semana sim, semana sim. As condições agrestes enfrentadas na realidade portuguesa não impediram o aparecimento de inúmeras vozes profissionais, sábias e, sobretudo, diversificadas, mas a sua vida ou morte é ditada direta ou indiretamente pela valorização que recebem dos leitores. Não são só os jogos sobre os quais se debruçam que merecem atenção; também os bons textos lusitanos que concebem têm valor artístico intrínseco.
Leituras
O artigo de Tiago Sá sobre roguelikes é só uma das várias razões pela qual o convidei esta semana. Tenho uma opinião contrária à do Tiago mas a forma como escreve dá vontade de ler, de escrever um artigo igualmente interessante sobre um tema tão vasto em design de videojogos.
Para além do combate, que pode ser uma espada de dois gumes, Final Fantasy VII Rebirth tem um grande problema para mim, tem demasiadas mecânicas e minijogos. - Armando Sousa sobre Final Fantasy VII Rebirth, Future Behind
Esta é uma das principais características de Rise of The Ronin, somos nós, o jogador, quem irá definir o caminho que o jogo toma, pelas decisões que tomamos e pelos aliados que fazemos pelo caminho, mas percebe-se que esta é uma primeira experiência da Team Ninja em construir árvores de dialógos, uma vez que a escrita e a própria narração dos actores (em inglês pelo menos) não são pontos fortes deste jogo. Esta liberdade que quiseram dar aos jogadores poderá ser gratificante para quem gosta desta abordagem (que eu pessoalmente não sou o maior fã), mas acaba por redundar numa experiência menos imersivo. - Guilherme Teixeira sobre Rise of The Ronin, CA Notícias
Apesar destas limitações, não consigo calar o meu ímpeto de me pronunciar, porque os rogueli*es, que se estrearam no universo indie, estendem languidamente os seus rizópodes para os AAA, e tudo indica que vieram para ficar. Tal e qual como os protagonistas dos roguelikes, que recusam a aceitar o descanso eterno por mais mortes canónicas que sofram. "Reflexão | Ensaio sobre os Roguelikes: Reciclar, Reutilizar, e outro montão de 'Re's" por Tiago Sá, GameForces
A imersão no universo dos jogos de tabuleiro permite-nos estabelecer pontes entre estes e os videojogos. Se o fizemos com Tamarak Trail e o magnífico Dice Forge, para SpellRogue é quase imediato pensarmos num dos maiores vícios que temos tido em minha casa nos últimos 4 anos: Dice Throne. - Ricardo Correia sobre SpellRogue, Rubber Chicken
É impossível, mais uma vez, não fazermos pontes para os videojogos modernos, em que, talvez por já termos tantas coisas dentro deles, estes momentos, até um pouco ridículos mas absolutamente deliciosos, tenham deixado de acontecer. Lá está, a quanta criatividade obriga a falta de outros recursos. - Filipe Branco sobre Metal Gear Solid, Café Mais Geek
Mecanicamente, o jogador está constantemente a ser estimulado, com desafios simples, de rápida aprendizagem, e cada proposta destaca-se por si só, não só por se situarem em ambientes e palcos completamente distintos, como na forma como o jogador tende a interagir e a abordar cada papel, sendo sempre diferentes. - Tiago Marafona sobre Princess Peach: Showtime!, Squared Potato
Essencialmente, Rise of the Ronin encontra-se preso entre dois mundos – tentando apelar a um público mais vasto e mantendo a essência dos seus antecessores. No entanto, ao fazê-lo, arrisca-se a alienar ambos os campos, deixando-o vulnerável a críticas e desilusões. Só o tempo dirá se a experiência ousada da Team Ninja irá compensar ou se acabará por ser recordada como um passo em falso numa carreira que, de resto, é ilustre. André Silva sobre Rise of The Ronin, Portugal Gamers
Sem grande pé no passado, sei que agora o protagonista interage mais com os companheiros masculinos e dispõe de mais atividades em grupo. De igual modo, os antagonistas também são desenvolvidos para justificarem a sua presença, sem deturpar a mensagem original. No final do dia, trocadilho contextual propositado, é o mesmo jogo. Apenas com o suficiente para manter a experiência fresca. - André Pereira sobre Persona 3 Reload, Echo Boomer
Mesmo sabendo que WWE 2K24 não é um jogo perfeito, o que o puxa para baixo é completamente insignificante face ao que o eleva. Diogo dos Santos sobre WWE 2K24, Echo Boomer
Uma das características mais marcantes é a sensação de que cada circunstância é única e impossível de prever, graças à estrutura aleatória dos eventos no jogo. Ao contrário de muitos RPG’s onde os encontros integram um script, em Dragon’s Dogma 2, os jogadores podem deparar-se com eventos completamente inesperados a qualquer momento, o que acrescenta imenso à atmosfera de tensão e excitação. - Nuno Mendes sobre Dragon’s Dogma 2, Salão de Jogos
Para ouvir
Se há um convidado que não esperaria ouvir neste podcast é este: o infame advogado Jack Thompson. O conhecido advogado, que liderou processos contra a Rockstar Games e outras empresas que criaram jogos violentos, é sobejamente conhecido por ser uma figura de proa contra os videojogos. Um episódio de My Perfect Console, de Simon Parkin, especialmente bom.
Vejam isto
Não sou versado numa boa parte dos videojogos japoneses e é por isso que gosto de aprender tanto sobre o que se faz por lá. O canal GVG, no YouTube, lançou um vídeo sobre um dos trabalhos do falecido Toriyama, Dragon Quest II, onde argumenta a importância desta obra que muitos jogadores desconhecem.