#122 Depois de Um Milhão: O Que Está em Jogo na Preservação dos Videojogos
A campanha Stop Killing Games chegou à meta. Mas será que os consumidores estão mesmo protegidos? E o que diz a lei portuguesa? Fui perguntar à DECO.
Um milhão de assinaturas depois
Em março escrevi sobre a Stop Killing Games, uma iniciativa lançada por Ross Scott para travar o desaparecimento de videojogos digitais pagos, removidos por empresas como se fossem descartáveis. A proposta era simples: pressionar o Parlamento Europeu a criar legislação que proteja os jogadores deste tipo de práticas. Mas a meta era ambiciosa; recolher um milhão de assinaturas num continente onde o tema raramente é debatido pelos políticos.
Agora, a meta foi alcançada. A petição superou a fasquia necessária e a Comissão Europeia terá de a analisar. O que era um protesto de nicho tornou-se uma questão com peso político — e importa perceber que implicações pode ter, tanto na Europa como em Portugal.
Segundo o Dr. Luís Pisco, jurista do Departamento Jurídico e Económico da DECO, “o eventual sucesso desta iniciativa estará irremediavelmente dependente do facto dos seus autores conseguirem demonstrar ser possível tecnicamente criar um ambiente digital (plataforma, repositório) onde seja possível jogar jogos descontinuados ou removidos, sem que daí advenha custos relevantes para a indústria de jogos.” Ou seja, para convencer o Parlamento Europeu, não basta um número: é preciso provar que há soluções viáveis.
Com isso em mente, voltei ao tema. Nesta nova peça, tento perceber o que está em causa do ponto de vista legal, o que diz a legislação nacional e europeia, como se posicionam as associações de consumidores e o que poderá realmente acontecer se esta iniciativa não for ignorada como tantas outras.
O que está em causa: jogos pagos que desaparecem
A iniciativa Stop Killing Games nasceu da frustração acumulada de Ross Scott, criador da série Freeman’s Mind e voz crítica da indústria, ao ver jogos pagos tornarem-se inutilizáveis com o desligar de servidores. Ao contrário do que acontece com um livro ou um filme comprado, um videojogo digital pode simplesmente deixar de funcionar — mesmo que o tenham pago, mesmo que esteja instalado no vosso disco.
Foi o que aconteceu com The Crew, um jogo da Ubisoft com mais de doze milhões de jogadores registados. Depois de quase uma década à venda, foi removido das lojas e, pouco depois, tornou-se impossível de jogar, mesmo para quem o comprou legalmente. O caso não é único. Ross Scott estima que já existam mais de duzentos jogos completamente inutilizáveis e outras três centenas em risco de desaparecer.
A Stop Killing Games tem dois grandes eixos: pressão legal e mudança legislativa. Ross mobilizou queixas para agências de proteção ao consumidor em França, Alemanha e Austrália, e lançou petições formais no Reino Unido, Canadá, Austrália e, claro, na União Europeia. A última ganhou tração: chegou finalmente ao milhão de assinaturas, o que obrigará a Comissão Europeia a pronunciar-se.
Mas a questão legal está longe de ser simples. O Dr. Luís Pisco, advogado da DECO, com o qual falei via e-mail, confirma que “não conhecemos jurisprudência que tenha tido por objeto, particularmente, jogos digitais”, o que torna o campo jurídico ainda mais indefinido. Mesmo com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 84/2021 — que regula os direitos dos consumidores sobre conteúdos e serviços digitais; há muitas zonas cinzentas.
Segundo o jurista, “numa analogia possível, seria o mesmo que obrigar um fabricante de automóveis a disponibilizar peças novas para modelos fabricados nos anos 40 ou 50 do século passado.” A preservação de jogos pode ter valor cultural, mas nem sempre é considerada uma obrigação comercial.
Direitos dos consumidores: o que a lei portuguesa realmente protege?
Se compraram um jogo digital e deixaram de o conseguir jogar porque foi removido da loja ou os servidores foram desligados, é legítimo sentirem-se enganados. Mas será que a lei está do vosso lado?
Em Portugal, a resposta depende de vários fatores. O principal é o tempo: se a compra for recente, há mecanismos legais para proteger o consumidor. Segundo o Decreto-Lei n.º 84/2021, os conteúdos e serviços digitais têm uma garantia de dois anos quando fornecidos num único ato (ou em prestações). Se for um serviço de fornecimento contínuo — como um jogo online ou um season pass — a garantia aplica-se enquanto durar esse fornecimento.
Dr. Luís Pisco, da DECO, esclarece: “Tratando-se de jogo comprado ainda dentro da garantia legal, pode o consumidor exigir a reposição da conformidade (a remoção do jogo implica a impossibilidade de o jogar). Em algumas situações, pode o consumidor exigir a redução do preço ou a resolução do contrato.”
No entanto, nos casos em que o jogo já tem vários anos (sobretudo quando a editora deixou de lhe prestar atualizações) os direitos do consumidor ficam mais frágeis. A partir de dez anos após o lançamento, o produtor deixa de estar legalmente obrigado a garantir a funcionalidade do jogo.
“Não sendo justo onerá-los com responsabilidades sobre produtos ou serviços há muito tecnologicamente obsoletos”, justifica o advogado, lembrando que também é preciso incentivar a inovação e proteger os produtores de responsabilidades perpétuas.
Há ainda outro obstáculo importante: os termos e condições das plataformas digitais. Ao clicarem em “Aceito”, estão muitas vezes a consentir que o jogo possa ser removido — mesmo que tenham pago por ele. Isto aplica-se tanto a lojas digitais como a serviços de subscrição, como o PlayStation Plus ou o Xbox Game Pass. “O consumidor deve ler sempre muito atentamente todas as cláusulas do contrato para não ser surpreendido por uma situação como esta”, avisa o jurista.
E se perderem o acesso a um jogo comprado? Se estiver dentro da garantia, há margem para reclamar. Fora disso, resta pouco: “Torna-se muito difícil ao consumidor reagir contra esta decisão”, reconhece o advogado.
A resposta da indústria e o que está em jogo no Parlamento Europeu
A pressão está agora do lado das instituições europeias. A iniciativa Stop Killing Games conseguiu ultrapassar a barreira simbólica e legal de um milhão de assinaturas, o que obriga a Comissão Europeia a pronunciar-se (caso não haja demasiadas assinaturas invalidadas) e, potencialmente, levar o tema ao Parlamento Europeu. Mas o caminho para uma mudança legislativa está longe de ser garantido.
Dr. Luís Pisco, da DECO, sublinha esse ponto com clareza: “É demasiado cedo para podermos especular sobre como irá terminar esta iniciativa.” Na sua perspetiva, o sucesso dependerá da capacidade dos promotores demonstrarem que é tecnicamente viável manter jogos antigos acessíveis sem impor custos insustentáveis à indústria. “Penso que o eventual sucesso desta iniciativa estará irremediavelmente dependente do facto dos seus autores conseguirem demonstrar ser possível criar um ambiente digital (plataforma, repositório) onde seja possível jogar jogos descontinuados ou removidos, sem que daí advenha custos relevantes para a indústria de jogos.”
Entretanto, a indústria começa a reagir. A associação Video Games Europe, que representa editoras e estúdios no espaço europeu, manifestou-se abertamente contra a iniciativa, alegando que os consumidores já estão protegidos pelas regras atuais. Para o jurista da DECO, esta reação não é surpreendente: “É natural que a indústria de jogos esteja contra. Caberá aos autores da iniciativa demonstrar a força dos seus argumentos e a necessidade de igualação de direitos online aos existentes offline.”
Este ponto toca num debate mais amplo: porque é que direitos que damos por garantidos em produtos físicos ainda não se aplicam de forma equivalente ao digital? Se uma cassete VHS ou um livro deixarem de funcionar, continuamos a possuí-los. Com os videojogos digitais, essa posse é ilusória; e a qualquer momento, o botão de desligar pode ser pressionado do lado de lá dos servidores.
Para que a campanha Stop Killing Games não termine no limbo político, será fundamental manter o tema na agenda pública e mediática. As associações de defesa do consumidor podem ter um papel crucial. “As associações europeias de defesa dos consumidores estarão também naturalmente atentas”, nota Pisco, apontando para uma possível frente comum no futuro.
Uma causa que diz respeito a todos os que jogam
Começámos este artigo com uma pergunta implícita: como é possível que um produto comprado legalmente possa desaparecer sem deixar rasto? Depois de ouvir Ross Scott e Dr. Luís Pisco, a resposta é desconfortável: é possível porque a lei ainda não protege o consumidor digital como devia; porque a indústria prefere o silêncio à responsabilidade.
Ross Scott quer acabar com a destruição deliberada de videojogos. O advogado da DECO reconhece que o tema está “ainda numa fase muito embrionária”, mas destaca que “a tendência é para a progressiva igualação” entre os direitos no mundo físico e no digital. Ambos, cada um à sua maneira, apontam para um futuro onde comprar um jogo signifique, de facto, poder jogá-lo.
A luta da Stop Killing Games é pela preservação, sim — mas é também pelo respeito. Respeito pelo tempo, pelo dinheiro e pelo afeto que os jogadores investem. E, sobretudo, pelo princípio básico de que, no digital, os direitos não podem ser descartáveis.
Seja com petições, com legislação, com repositórios digitais ou com mais atenção ao que aceitamos nos termos e condições, esta luta continuará. Porque, como lembra a DECO, “cabe ao consumidor ler atentamente todas as cláusulas” — mas também cabe à sociedade exigir regras mais justas. E isso, tal como os bons jogos, merece continuar a jogar-se até ao fim.
Leituras
Partilho convosco, semanalmente, o que de melhor li, sem outra ambição que não seja a de recomendar bons textos a quem, como eu, procura boas palavras.
Análises - espelhos onde os autores, nos seus textos, mostram a verdade das experiências pelas quais passam.
Mario Kart World, Tiago Sá - GameForces
Death Stranding 2: On the Beach, Filipe Branco - Café Mais Geek
Lies of P: Overture, João Canelo - Echo Boomer
Void Sails, Ricardo Correia - Rubber Chicken
Elden Ring Nightreign, Diogo Arez – Fun Factor
Star Overdrive, Sara Kohl - Squared Potato
Every Day We Fight, Rui Gonçalves - Salão de Jogos
Ruffy and the Riverside, Gonçalo Carvalho - Rubber Chicken
Para ouvir
Por muito que goste de jogos RPG, é muito provável que nunca jogue Clair Obscur: Expedition 33 - não tenho onde jogá-lo e, provavelmente, nem tempo para tal. Por isso, deixei-me levar pelas palavras do trio que constitui a Masmorra do Glitch e perceber o que o jogo gaulês foi e poderá eventualmente ser.
Vejam isto
Mais um vídeo sobre game design - uma disciplina pela qual estou cada vez mais interessado. Talvez um dia faça o meu próprio jogo ou escreva a narrativa de um.