#118 Artesanato da Diversão, Ruffy and the Riverside
Uma conversa com os criadores de Ruffy and the Riverside sobre criação artesanal, fluidez e identidade.
Desenhar o Mundo Como Antigamente
Há jogos que se destacam pela jogabilidade, outros pela arte, e alguns - os mais raros - pela forma como entrelaçam ambos num só gesto criativo. Ruffy and the Riverside pertence a esta última categoria. É um jogo de plataformas onde se corre, salta, resolve puzzles e ajuda criaturas falantes - mas, sobretudo, um espaço onde o próprio mundo pode ser reinventado.
Através do SWAP, uma mecânica que permite trocar texturas e propriedades dos objetos - transformando, por exemplo, madeira em ferro ou lava em água - o jogo convida-nos a reimaginar tudo o que vemos. Não se trata apenas de ultrapassar obstáculos, mas de transformar o espaço, como quem pega num pincel pela primeira vez e, instintivamente, sabe o que fazer.
É uma ideia engenhosa - e arriscada. Qualquer jogo que ofereça tanta liberdade corre o risco de se perder na complexidade. Como orientar o jogador sem o limitar? Como manter coerência visual num mundo que pode ser redesenhado em tempo real? Como garantir que tudo continua a ser um jogo - e não apenas um brinquedo? As respostas estão no coração da Zockrates Labs, um estúdio independente que trabalha há anos nesta obra com a paciência e minúcia de quem vem mais das artes plásticas do que da engenharia de software.
E talvez isso explique tudo.
Era uma Vez um Estúdio Que Só Queria Desenhar
Antes de criarem jogos, os membros da Zockrates Labs já tinham uma longa ligação às artes visuais. Esculturas, ilustrações e exposições faziam parte do seu percurso - muitas vezes com os videojogos como tema. “Somos um grupo de artistas que fez muita arte relacionada com videojogos”, dizem-me. Chegaram a colaborar com a Nintendo numa exposição que deu forma física a mais de dez mil desenhos do Miiverse - uma declaração silenciosa de que o digital também é arte.
A transição para o desenvolvimento foi quase inevitável. “Adoramos desenhar e adoramos videojogos. Era uma questão de tempo.” Ruffy and the Riverside é o resultado: um jogo feito à mão, com alma de ilustração e uma mecânica que traduz essa sensibilidade - o SWAP.
A ideia surgiu de um desenho a preto e branco, ambíguo: cascata ou lava? “Pensei: e se pudesse ser as duas coisas?” Com o SWAP, o jogador altera texturas, funções - e sentidos. Mas com liberdade vem responsabilidade. “Queríamos dar poder criativo ao jogador sem o sobrecarregar.”, diz-me a Zockrates Labs. Forma e função evoluíram lado a lado, num processo onde cada detalhe foi refinado com obsessão.
Texturas do Invisível: Quando o Mundo Muda Com uma Ideia
Há jogos que nos desafiam a agir, outros que nos fazem pensar. Ruffy and the Riverside convida-nos a sonhar. O SWAP não é só uma função, é uma ideia: uma dúvida visual que se transforma em possibilidades infinitas.
Com esta ferramenta, o jogador altera materiais, padrões, símbolos e significados. Trocar texturas é o início; transformar o mundo, o destino. Puzzles baseados em lógica, rimas ou símbolos fazem-nos repensar o espaço de forma intuitiva. Até a progressão estética - com roupas que alteram habilidades - reforça a ligação entre forma e função.
Por vezes, o jogo surpreende os próprios criadores. Um jogador transformou uma floresta em árvores de ferro para atravessá-la - algo não previsto. E foi deixado assim. Porque quando o mundo reage à imaginação, Ruffy deixa de ser apenas um jogo. Torna-se uma tela viva.
Explorar Sem Amarras: o Equilíbrio Entre Liberdade e Propósito
Neste jogo, a exploração livre anda de mãos dadas com a estrutura. O jogador pode vaguear, rir com missões paralelas, descobrir atalhos - mas sabe sempre onde está o Norte.
“É um conceito simples, mas poderoso”, explicam os criadores. No hub central, reina a autonomia; nas zonas exteriores, há direção. Esta alternância revela uma compreensão sobre como aprendemos e crescemos. Não há tutoriais extensos - há espaço para experimentar.
Ao centro está o SWAP - mais do que uma mecânica, um reflexo da liberdade criativa. Um convite a confiar nas próprias ideias. “Se Ruffy fizer alguém sentir mais confiança na sua imaginação, isso já é uma vitória.”
Sem violência, com espaço para humor e surpresa, Ruffy constrói uma experiência emocional prolongada - onde o prazer de descobrir se cruza com o prazer de compreender.
O Movimento Artístico do Pincel Digital: Arte, Jogo e Recomeço
À primeira vista, Ruffy and the Riverside parece um jogo encantador, pintado com leveza e cores vivas. Mas por trás desse verniz ilustrado há uma lógica obsessivamente cuidada, herdeira de ateliers, não de laboratórios. A equipa da Zockrates não vem da engenharia - vem das artes. O que se sente em cada ecrã é composição, não apenas design. Curadoria, não apenas gameplay.
“Refazer e refinar define o nosso processo”, dizem. Significa redesenhar animações, apagar diálogos, reconstruir níveis - como um pintor que raspa a tinta para reencontrar o azul certo. Trabalham por camadas: testam, recuam, olham de longe. “É como uma tela viva: estamos sempre a voltar atrás para ver o quadro completo.”
Até decisões aparentemente simples têm peso. Por exemplo: as moedas colecionáveis. No início estavam ali por diversão - até alguém perguntar: “Porquê?” Daí nasceu uma das mecânicas centrais: a personalização de Ruffy. As moedas passaram a servir para comprar roupas que afetam diretamente a jogabilidade. “Sem elas, a capacidade de corrida nem existiria.”
Não é um detalhe de bastidor. É o reflexo de um design em espiral, onde uma decisão pequena desencadeia mudanças profundas - como uma pedra lançada num lago que altera toda a superfície. Nada em Ruffy está lá por acaso. A estética não adorna - orienta. A arte não distrai - convida à acção. O mundo não parece programado. Parece vivido.
O Poder da Transformação: o Segredo Por Trás do SWAP
No coração de Ruffy and the Riverside está uma ideia simples e poderosa: o SWAP. Mais do que uma mecânica, é um convite à criatividade - à remodelação do mundo com imaginação.
Tudo começou com um desenho ambíguo: cascata ou lava? A partir dessa dúvida nasceu um universo onde a realidade é fluida, onde o ambiente responde ao olhar e à vontade do jogador.
Mas liberdade não é caos. Equilibrar o SWAP para que fosse útil mas não dominante foi um dos maiores desafios. “Queríamos que resolvesse problemas, abrisse caminhos e criasse possibilidades, mas sem anular a aventura.” A solução veio com as swappabilities: dezenas de variações que enriquecem o jogo sem o trivializar.
Cada troca carrega um sentido. O jogador não manipula apenas o cenário - participa numa dança de significados e símbolos. Pode alterar não só materiais e cores, mas também a lógica do mundo.
Os playtests revelaram o potencial expressivo da mecânica. “Um jogador transformou árvores em ferro para atravessar a floresta - algo que não prevíamos, mas adorámos.” O SWAP tornou-se mais do que ferramenta. Tornou-se linguagem.
Onde a Curiosidade Ainda Conta
Ruffy and the Riverside não é apenas uma ideia bem executada - é uma afirmação. Uma demonstração clara de que o futuro dos videojogos não precisa de nascer de fórmulas repetidas ou de orçamentos colossais. Pode, sim, emergir da inteligência de uma mecânica bem pensada, de uma direcção artística segura e de uma ambição que recusa o facilitismo.
O que aqui se propõe não é apenas jogar de forma diferente. É pensar diferente. Ver o mundo do jogo não como cenário, mas como sistema vivo - maleável, moldável, transformável. E isso, num meio tão saturado de convenções, é mais do que refrescante. É urgente.
Talvez poucos reparem. Talvez passe ao lado do barulho. Mas quem estiver atento - quem ainda jogar com curiosidade genuína - saberá reconhecer em Ruffy and the Riverside algo raro: um gesto criativo consciente, lúcido, decidido. Um jogo que sabe o que quer ser e o faz sem pedir desculpa. E isso, hoje, é mais revolucionário do que parece.
Informações adicionais de Ruffy and the Riverside:
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Leituras
Partilho convosco, semanalmente, o que de melhor li, sem outra ambição que não seja a de recomendar bons textos a quem, como eu, procura boas palavras.
Análises - espelhos onde os autores, nos seus textos, mostram a verdade das experiências pelas quais passam.
Elden Ring Nightreign, Diogo Lopes - Squared Potato
Commandos: Origins, Henrique Adão - Meus Jogos
Copycat, João Canelo – Echo Boomer
JDM: Japanese Drift Master, Sara Kohl - Squared Potato
Mario Kart World, Aníbal Gonçalves - IGN Portugal
Elden Ring Nightreign, André Silva - Portugal Gamers
Mario Kart World, Nuno Mendes - Meus Jogos
Artigos – mapas que orientam o pensamento, onde cada ideia procura abrir caminho para novas formas de ver os videojogos.
The Alters - Um aperto intergalático, Pedro Pestana - IGN Portugal
Para ouvir
Ricardo Correia, na Feira do Livro de Lisboa, foi falar com Sir Ian Livingstone, escritor britânico e fundador da Games Workshop, a propósito do reedição dos livros Fighting Fantsay / Aventuras Fantásticas publicados recentemente pela Porto Editora. Uma conversa que vale a pena ouvir.
Vejam isto
Pedro Pimenta entrevista Rogério Jardim no seu canal no YouTube, para o seu programa Hora Retro. O entrevistado é um ex-jornalista na área dos videojogos, daí ter achado que seria relevante e um bom vídeo para trazer para as recomendações semanais.