#109 Paradise Café: Memórias de um Café que Nunca Existiu
Entre a cassete e o mito, um retrato dos desejos e fantasmas de uma geração portuguesa dos anos 80.
Ninguém o comprou. Todos o jogaram.
Durante os anos oitenta, em qualquer sala de estar portuguesa, o som característico da cassete a rodar no ZX Spectrum anunciava algo especial - ou, no caso de Paradise Café, algo proibido.
Este breve enunciado resume a essência de um jogo que transcendeu os limites da simples jogabilidade para se transformar num verdadeiro fenómeno cultural. Em vez de ser um produto de consumo, Paradise Café tomou forma como um mito oral, um segredo partilhado de boca em boca entre uma geração ávida por descobrir os limites da liberdade recém-conquistada. Mas o que torna este jogo tão emblemático e como é que este nos reflete enquanto sociedade? É no que procurarei refletir ao longo deste ensaio.
Desde o seu lançamento, em 1985, Paradise Café nunca foi um mero jogo. Foi, e continua a ser, uma lenda urbana. Poucos o possuíam de forma “oficial” - a sua circulação ocorria predominantemente através de cópias pirateadas, de cassetes passadas de mão em mão, de histórias contadas nos recreios e pelos corredores das escolas.
Esta característica confere ao jogo uma aura mítica: deixa de existir tanto como objeto físico, como experiência de jogo padronizada e, em vez disso, vive na memória coletiva. Como se diz por aí, há coisas que se sabem e que se contam, mesmo que ninguém as tenha visto por inteiro. Eis o paradoxo de Paradise Café: a sua imperfeição técnica e estética não o impediu de se tornar um arquétipo do folclore digital, um segredo partilhado que transcende o consumo imediato.
A “rua infinita” presente no jogo é mais do que um simples elemento mecânico – pode ser interpretada como um espelho distorcido da década que a viu nascer. Os anos oitenta em Portugal foram uma época de contrastes intensos: a celebração de uma liberdade recém-conquistada pós-25 de Abril, misturada com as dificuldades e contradições de uma sociedade em transição.
Paradise Café traz à tona estas dualidades com uma crueza quase poética. Em cada porta que o jogador descobre, há uma nova surpresa que pode ser tanto sedutora quanto perturbadora. Essa multiplicidade de situações reflete o turbilhão de desejos e medos que marcaram uma geração que, por um lado, ansiava por mais liberdade e, por outro, encontrava-se abalada por realidades duras, pela pobreza e pelos conflitos sociais.
“Numa época em que poucos ousavam falar de sexo, crime e violência de forma aberta, Paradise Café colocou todas estas temáticas num único jogo, tornando-se o equivalente digital do grito de uma juventude sedenta de romper com o status quo”, poderíamos dizer, encontrando em cada porta aberta um reflexo dos dilemas que assombravam o espírito daquele tempo.
O caráter proibido de Paradise Café é um dos seus traços mais marcantes. Era um jogo sobre o proibido, um convite velado para explorar os limites do aceitável. Em cada sessão, a narrativa improvisada - ou quase sempre instável, segundo as limitações do hardware do ZX Spectrum - trazia à tona imagens de violência, sexo e transgressão que ultrapassavam os confortos da moralidade vigente.
Não é de hoje que se pensa que o proibido atrai de forma singular. O jogo atuava como um rito de passagem para muitos, um código entre aqueles que desejavam conhecer o obscuro. Falar de Paradise Café era como abrir a porta para um universo paralelo - um espaço onde os tabus eram postos em causa e as conversas ganhavam um tom quase clandestino, sussurradas entre amigos como se escondessem algo valioso.
Entre amigos, eram contadas histórias - muitas vezes imprecisas e exageradas - sobre o mítico personagem Reinaldo, cuja representação pixelizada tornava-se sinónimo de rebeldia. Esse ritual de partilha, onde cada jovem assumia a responsabilidade de transmitir aquele “conhecimento proibido”, criou um vínculo intrínseco entre gerações. Em última análise, o jogo tornou-se mais do que entretenimento: ele era uma forma de comunhão num tempo onde a censura e o conservadorismo ainda pesavam.
Preservar Paradise Café é, por si só, um ato carregado de contradições. Por um lado, há o desejo de conservar algo que, apesar de suas qualidades técnicas medíocres, é um retrato fiel de uma época de experimentação e liberdade; por outro, há a dificuldade de lidar com os aspectos problemáticos do seu conteúdo.
“Preservar não é sinónimo de encorajar os valores do personagem principal deste titulo, é sempre bom deixar isso bem explicito.”, disse-me um dos meus entrevistados para um artigo que será posteriormente publicado. Preservar é reconhecer e contextualizar um pedaço da nossa história cultural. O debate torna-se filosófico: como lidar com obras de arte que chocaram a sociedade, mas que, ao mesmo tempo, revelam verdades dolorosas ou inspiradoras sobre o nosso passado?
Num mundo que, cada vez mais, parece esquecer a importância dos seus erros e acertos, a preservação de Paradise Café assume o papel de memorial. A edição limitada da Larvae Records, publicada recentemente, é, nesse sentido, um convite para que tanto os veteranos quanto os jovens revisitem um capítulo importante, embora controverso, dos videojogos portugueses. “É sempre importante preservar o passado, mesmo que o mesmo seja desconfortável e polémico. É sem duvida um marco na cultura dos video jogos nacional”, afirmou um dos entusiastas do ZX Spectrum com o qual tive o prazer de falar. Ou seja, sem o confronto com o incómodo, não haveria evolução social.
Hoje, quatro décadas depois, Paradise Café continua a ressoar nas mentes e nas memórias dos que viveram a sua era. O jogo, que nunca necessitou de ser comprado para se tornar mítico, encontra novo vigor nas conversas dos retrogamers e no debate cultural que se instaurou em torno dele.
Mas, acima de tudo, Paradise Café representa a audácia de uma geração que ousou sonhar e transgredir, que desafiou as normas através de simples bits e bytes. É um convite para recordar que, mesmo no mais modesto dos jogos, pode residir uma verdade profunda sobre o desejo, a rebeldia e a eterna busca pela liberdade.
Assim, ao preservarmos o legado do Café Proibido, não resgatamos só uma peça do passado, mas também abrimos espaço para que novas gerações reflitam sobre o quanto os valores de proibição e transgressão contribuíram para a construção da nossa identidade cultural.
Hoje, olhamos Paradise Café como se atravessássemos uma montra antiga de um desejo que já não existe - ou que talvez nunca tenha desaparecido. Não é só o jogo que importa, mas o tempo em que se jogou, as vozes que se lembram, o silêncio que ficou.
E como qualquer rua que se perde no horizonte, Paradise Café não termina aqui. O resto da história — e das histórias — será contada em breve, no Rubber Chicken.
Leituras
Tenho dedicado consideravelmente mais tempo à escrita do que à leitura (quem leu a newsletter até este ponto provavelmente já entende o motivo). Além de ter avançado muito pouco em Samitério de Animais, obra que estou a ler no meu clube de leitura, também não consegui acompanhar todos os textos publicados na nossa praça. Por isso, esta seleção está mais concisa do que o habitual.
E ao longo de múltplas runs – quase ao estilo roguelike – em que trazemos sempre algo das runs anteriores para a meta-progressão, sentimos que esta forma de contar histórias é brilhante. - Ricardo Correia sobre Expelled!, Rubber Chicken
Os jogos políticos acontecem entre cutscenes simples, cuja escrita nem sempre é a mais memorável – mas aqui não incluo Suikoden II, que se destaca pela positiva – ou as suas personagens as mais profundas. Talvez sejam as décadas de experiência com as produções japonesas que agora condicionam o meu paladar e que me cansam devido ao seu classicismo. - João Canelo sobre Suikoden I&II HD Remaster: Gate Rune and Dunan Unification Wars, Echo Boomer
O mais impressionante é como o jogo consegue que esta constante reinvenção das mecânicas não pareça uma sucessão de minijogos, mas sim uma progressão coesa. - André Silva sobre Split Fiction, Portugal Gamers
Para ouvir
Foi Um dos meus podcasts favoritos regressou. Hotel, do humorista Luís Franco-Bastos, voltou para uma sexta e última temporada. Quando terminar, este será provavelmente o único podcast que vou voltar a ouvir do início de tão bom que é. A família Fagundes é única e já me ri bastante com as interpretações do humorista que dá a voz a todas as personagens.
Vejam isto
Os jogos são divertidos. Porém, ao longo da nossa vida acumulam-se responsabilidades - laborais, familiares e pessoais. Não há nada a fazer, por vezes, ligar uma consola não resulta. Se não tivermos a disposição certa, não adianta, a sensação de divertimento não aparece.
Excelente texto, e bela viagem a um passado que não se conhecia pelos meus lados, nos Açores.
Muito bom.