#103 Reconhecimento cultural
Como a falta de valorização cultural impede a maturidade da indústria de videojogos em Portugal.
Como disse na semana passada, fiquei bastante inspirado para escrever sobre o tema lançado por Rui Parreira no seu vídeo no canal de YouTube, Split-Screen Glogs, criado para debater diversos assuntos. O mais recente vídeo (até ao momento em que escrevo esta newsletter, domingo, 2 de Março) intitula-se "O que falta para o amadurecimento da indústria gaming?" e aborda uma questão complexa, já vivida por outras formas de arte. A mais recente terá sido a banda desenhada; agora, são os videojogos.
A indústria de videojogos em Portugal tem crescido, mas continua a enfrentar um obstáculo fundamental: a falta de reconhecimento cultural e mediático nos meios de comunicação tradicionais. Os videojogos surgem ocasionalmente nesses espaços, mas, na maioria das vezes, para serem demonizados. Já falei disso quando a SIC Notícias fez uma peça sobre videojogos. Enquanto forem vistos apenas como um passatempo, e não como uma forma de expressão artística ou um setor económico relevante, a indústria terá dificuldades em alcançar a maturidade que já vemos em países como França, Canadá ou até na nossa vizinha Espanha. Em Portugal, os videojogos ainda não são tratados como um meio artístico comparável ao cinema, à literatura ou à música. Quando se fala de cultura no país, raramente os jogos entram na conversa, e isso tem um impacto direto no seu crescimento. Abram a revista E do semanário Expresso e vejam se há alguma menção a videojogos equiparável ao espaço dado a filmes e séries. Já não leio há imenso tempo o jornal semanal do grupo Impresa em papel, mas duvido que isso tenha mudado. Apesar de existirem criadores talentosos e projetos de qualidade internacional, falta um espaço sério para a discussão crítica, o estudo e a valorização dos videojogos como arte.
Nas últimas décadas, assistimos à normalização do cinema português, que, mesmo enfrentando desafios financeiros, recebe apoios, tem festivais dedicados e é debatido nos meios de comunicação. Sim, existe o RTP Arena, mas é um projeto secundário, tal como a SIC Advnce o foi (seria curioso perceber porque é que um falhou e o outro não). O mesmo não acontece com os videojogos, apesar de Portugal ter estúdios premiados e jogos reconhecidos lá fora. Enquanto os videojogos não forem vistos como parte integrante da cultura portuguesa, continuarão a ser tratados como algo secundário.
Outro grande entrave ao amadurecimento da indústria é a forma como os videojogos são abordados nos meios de comunicação tradicionais. A maior parte dos jornais e canais de televisão só fala de jogos quando há polémicas, como debates sobre violência ou vício - ou são um passatempo pueril ou são um vício pior que a droga. Raramente se cobre o impacto artístico, narrativo ou inovador de um jogo e, quando isso acontece, geralmente é de forma superficial.
Se um escritor português lança um livro, há uma boa possibilidade de receber atenção da imprensa cultural. Se um realizador estreia um filme, este pode ser analisado por críticos especializados. Mas se um estúdio português lança um jogo de qualidade, muitas vezes nem sequer é mencionado nos principais meios de comunicação. Esta desigualdade no tratamento mediático reforça a ideia de que os videojogos são um nicho e não uma forma de arte com valor cultural.
A mudança tem de começar na forma como falamos sobre jogos. Para que a indústria amadureça, é essencial que existam espaços onde os videojogos sejam discutidos com a mesma seriedade com que se fala de cinema ou literatura. Isso não significa eliminar a vertente de entretenimento – até porque o cinema também tem blockbusters –, mas sim reconhecer que os videojogos podem ser muito mais do que isso.
O reconhecimento cultural também se reflete no apoio institucional. O cinema português recebe financiamento público porque é considerado uma arte digna de preservação e incentivo. Já os videojogos, apesar de serem uma indústria em crescimento e com impacto económico, continuam a ser ignorados na maioria das políticas culturais do país.
Países como França e Canadá perceberam há muito tempo que investir nos videojogos é investir numa indústria criativa com enorme potencial. Estes países têm programas de apoio específicos para estúdios independentes, incentivos fiscais para empresas da área e fundos para projetos inovadores. Em Portugal, os poucos apoios existentes são dispersos e insuficientes, o que força muitos estúdios a procurar financiamento no estrangeiro ou a trabalhar em condições precárias. Sem um reconhecimento institucional forte, a indústria portuguesa continuará a depender de exceções em vez de se tornar um setor sólido e sustentável.
O amadurecimento da indústria de videojogos portuguesa não depende apenas de talento ou esforço individual – porque isso já existe. Depende de uma mudança na forma como os videojogos são vistos na sociedade. Perguntem a alguém que considerem culto se sabem qual é o jogo que ilustra esta newsletter. Duvido que saibam. Se tivesse códigos para oferecer e se não fosse possível descobrir o jogo pela imagem através do Google Image Search, até oferecia um a quem soubesse que jogo é este, feito em Gaia.
Enquanto os media continuarem a ignorar os videojogos ou a tratá-los apenas como fonte de polémicas, enquanto as instituições culturais não os reconhecerem como parte da identidade criativa do país e enquanto os próprios criadores não tiverem apoio para desenvolver os seus projetos, a indústria continuará a lutar para ser levada a sério.
Os videojogos já provaram ser mais do que um passatempo. O problema é que, em Portugal, ainda não abrimos os olhos para essa realidade.
Leituras
Ainda Não sei porquê, mas desconfio, a crítica a videojogos continua muito descritiva e pouco analítica, quando devia ser precisamente o contrário. Felizmente, de vez em quando, aparece sangue novo para escrever sobre esta forma de arte e entretenimento.
Curiosamente, é quando Wilds se leva menos a sério que a narrativa brilha: os momentos mais leves e tolos são hilariantes, especialmente os que envolvem os adoráveis Palico ou os Wudwud. Certo é que a narrativa nunca foi o ponto central de Monster Hunter mas podia ser um pouco mais equilibrada. O que vale é que caçar monstros é fantástico, da primeira à milésima presa. - Pedro Pestana sobre Monster Hunter: Wilds, IGN Portugal
Compensou pela escrita, o estilo de humor e as referências bem portuguesas que nos leva a sentir que este é verdadeiramente um jogo feito em Portugal, abraçando a nossa cultura sem se tornar confuso para o público internacional. - Nuno Mendes sobre Alentejo: Tinto's Law, Meus Jogos
Mas, como o nosso protagonista descobre muito rapidamente, a guerra tem os seus quês, e por isso, ao longo da história, Henry irá caminhar na fina linha entre a vingança e a redenção. O caminho que escolhe, e as consequências associadas, fica inteiramente a cargo do jogador. Uma escolha que nem sempre é fácil quando estamos a meio de uma guerra entre os apoiantes do rei Venceslau IV da Boémia e de Segismundo I da Hungria. - Paulo M. Dias sobre Kingdom Come Deliverance II, Rubber Chicken
O que frusta é que nos níveis mais avançados, com a quantidade de hordas de inimigos e constantes ataques de área, por vezes é praticamente impossível nos desviarmos de tanta carga. Ainda assim, é importante ter em conta que não é esse ponto que nos impede de termos sucesso, porque na verdade é possível acabar o jogo, basta ter um pouco de calma e paciência, e ter sorte na run. - Rui Gonçalves sobre Warriors: Abyss, Salão de Jogos
Numa época em que tantos jogos se limitam a replicar o que já foi feito, seria injusto não elogiar Ultros por tudo o que arrisca a fazer diferente, como pelo facto de ser, indiscutivelmente, um jogo único. - Ricardo Correia sobre Ultros, Rubber Chicken
Para ouvir
Um novo programa do podcast Glitch Gamecast, onde Gonçalo Martins fará um programa sem compromissos de tempo, tema e regularidade. Aqui é um bom apanhado daquilo que é o novo jogo de Indiana Jones com fãs desta franquia com o lendário Harrison Ford.
Vejam isto
Aqui partilho um vídeo, com alguns meses, onde Ross Scott explica a iniciativa que criou Stop Killing Games. Em breve vão poder saber mais sobre esta temática nesta newsletter.