#076 Ler e jogar complementam-se inesperadamente
Salto entre as criações de Miyamoto e Saramago.
Ultimamente, o meu enriquecimento cultural está dividido entre duas grandes obras. Uma foi produzida por Shigeru Miyamoto e a outra escrita por José Saramago - dois grandes génios nas suas próprias áreas. No entanto, não podiam ser mais diferentes entre si, não só pelo meio utilizado para estas chegarem à pessoa que quer ficar com o que estas oferecem, como pela complexidade que estão presentes em cada uma. Quem me conhece, ou me segue nas redes sociais, sabe que estou a jogar Paper Mario: The Thousand-Year Door e a ler O Ano da Morte de Ricardo Reis, ambos geniais por razões muito diferentes. Como defendi aqui, a semana passada, os livros e os videojogos partilham algumas similaridades. Contudo, alguém que escolhe um jogo para se divertir ou entreter, para passar o tempo que tem a mais no dia - a altura ideal neste período de férias -, não vai optar por um livro pelas mesmas razões que decidiu ligar a sua consola para jogar um videojogo. Isso é mais do que óbvio, não precisam que um indivíduo qualquer vos faça perceber este facto, através de um texto que publicou na sua newsletter.
Tem o seu je ne sais quoi de fascinante saltar entre uma experiência e outra, entre a leitura e um jogo - o segundo oferece uma interatividade que o primeiro não tem. O primeiro não nos assoberba os sentidos para que nos seja entregue a experiência que o seu autor pretende, primeiro há um processo de criação de uma imagem na mente dos vários sentidos que as personagens sentem, do espaço e do tempo onde se desenvolve a narrativa (não conheço bem Lisboa, mas é como se tivesse passado uma boa parte da minha vida, como se estivesse no hotel onde está hospedado Ricardo Reis) que o escritor transmite através das suas palavras - e Saramago tem uma forma única de as construir em frases enormes e com uma pontuação fora do normal). O segundo, o jogo da GameCube, lançado recentemente na Switch, cativa-nos com a sua diversão patente no conjunto de mecânicas que inclui, mas sobretudo na narrativa surpreendente que nos conta - não é a típica história do mau que raptou a princesa (apesar de haver um vilão que capturou a Peach). Há tanta camada narrativa, principalmente cómica, assim como pontos levemente filosóficos quando se jogam com outras personagens que não têm um bigode farfalhudo.
Há uma magia em cada sessão de leitura ou "jogatana" (palavra que me faz inevitavelmente recordar o excelente podcast do Carlos), uma troca constante entre dois mundos que, apesar de distintos, têm o poder de nos transportar para realidades além da nossa. Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago desafia-nos a tecer reflexões sobre a vida, a morte e a identidade através das suas palavras densas e envolventes, enquanto Paper Mario: The Thousand-Year Door nos leva por uma aventura vibrante e colorida, repleta de humor e desafios que testam nossa criatividade e estratégia.
É esta alternância entre os dois tipos de media que nos oferece uma riqueza única. Quando mergulho nas páginas de Saramago, sou confrontado com a profundidade do pensamento filosófico e a complexidade emocional das personagens. Cada parágrafo é uma jornada, cada página, uma nova descoberta. Ricardo Reis, personagem enigmática que convive com a sombra do seu criador, Fernando Pessoa, faz-nos questionar a nossa própria existência e as relações que mantemos com o passado e o presente. Já no título da casa de Quioto, a experiência é mais imediata e sensorial. O prazer de resolver puzzles, a satisfação de superar inimigos e a alegria de explorar um mundo cheio de segredos e surpresas são instantâneos. No entanto, mesmo aqui, há momentos de introspecção e significado, camuflados entre as batalhas e diálogos pomposos. A narrativa pode parecer simples à primeira vista, mas esconde camadas de significado e emoção que se revelam lentamente a cada jogada.
Essas duas formas de arte, embora distintas, complementam-se de maneiras inesperadas. Onde um livro nos pede paciência e contemplação, um jogo oferece-nos ação e satisfação instantânea. Cada um, à sua maneira, exige o nosso envolvimento completo, a nossa atenção, dedicação e um desejo de explorar até os limites do possível. No fundo, seja através da prosa poético-filosófica de Saramago ou das aventuras animadas de Mario, o objetivo é o mesmo: enriquecer a nossa experiência humana, expandir os nossos horizontes e, acima de tudo, proporcionar momentos de profunda satisfação e prazer. Em tempos onde o imediatismo muitas vezes impera, é reconfortante saber que podemos encontrar valor tanto na lentidão contemplativa de um livro quanto na interatividade dinâmica de um videojogo.
Assim, continuo a dividir o meu tempo entre esses dois mundos, para partilhar, mais tarde, preferencialmente mais cedo que o previsto (e mesmo assim já será tarde) com a noção que, ao fazê-lo, estou a cultivar um jardim de experiências variadas e ricas.
Leituras
Mais uma excelente semana. Leiam que há bons artigos.
Por outro lado, isso acrescenta ainda mais complexidade ao mapa. Se no jogo original já era complicado perceber como chegar a determinadas áreas, agora isso torna-se ainda mais desafiador. Portanto, preparem-se para muitas vezes ficarem completamente perdidos, sem saber como subir para certos locais ou descer para algumas áreas. - Rui Gonçalves sobre Elden Ring: Shadow of The Erdtree, Salão de Jogos
No entanto, e é aqui que o título, que na verdade é um paradoxo com o texto do artigo, entra em jogo, para nós era indiferente se o jogo vinha carregado de defeitos, pois a experiência de estarmos os três colados ao ecrã para ver quem conseguia completar níveis mais rápido, ou teria melhor pontuação nos que assim exigiam, ultrapassava quaisquer obstáculos que tornassem uma experiência considerada como má, ou só menos boa. - "O Peso da Nostalgia" por Bruno Vieira, Squared Potato
Apesar destes acrescentos, a proposta base mantém-se, assim como a estrutura do jogo permanece intacta, o que acaba por lhe conferir quase um estatuto de jogo muito à frente do seu tempo, sobretudo pela versatilidade, pois tanto em experiência de jogo de mesa, como de consola portátil, Luigi’s Mansion 2 HD é simplesmente perfeito. - Tiago Marafona sobre Luigi's Mansion 2 HD, Squared Potato
Por falar em personagens, é raro ver um jogo em que cada NPC acrescenta tanto à caracterização do meio envolvente, tornando o jogo mais imersivo. Inicialmente até me pareceu conversa em excesso, mas gradualmente comecei a apreciar e perceber o objectivo pretendido, e até o Luigi a balbuciar a sua aventura paralela me animava, mesmo que todos os restantes personagens adormecessem a ouvi-la. - Gonçalo Carvalho sobre Paper Mario: The Thousand-Year Door, Rubber Chicken
Luigi's Mansion 2 HD, assim como qualquer outro título Luigi's Mansion, é o resultado de uma receita que parece ter como ingredientes Ghostbusters, Casper e filmes familiares de Halloween, como The Haunted Mansion e Scooby-Doo, pelo que todo o seu ambiente, dentro e fora da mansão, pede por meses mais invernosos, uma manta e um chá. - João Simões sobre Luigi's Mansion 2 HD, IGN Portugal
Mas para mim o verdadeiro destaque está nos diálogos: uma mistura de comentários deadpan e situações completamente surreais que frequentemente me deixaram com a pergunta “O que raio está a acontecer?” na cabeça, e a ficar feliz por não estar a perceber, esboçando um longo sorriso por estas estranhas interacções entre o elenco. - Ricardo Correia sobre Tiny Terry’s Turbo Trip, Rubber Chicken
Para ouvir
O Café Mais Geek teve uma semana recheada de apresentações de videojogos portugueses, espero que tenham havido mais pessoas do que eu a verem o que foi feito. Este episódio de Multiplayer Rumble encapsula aquilo que foi feito pela equipa do site português, um esforço que também sinto e dificuldades que partilho com eles. Não é fácil apresentar trabalho quando se está dependente de outros para fazê-lo.
Vejam isto
O canal PMG publica um vídeo sinto quase uma obrigação de o partilhar. É excelente conteúdo, um trabalho que incide na tremenda desgraça que o setor dos videojogos está a passar: os inúmeros despedimentos que se verificaram desde o início do ano.