#050 Escrever sobre videojogos, por Francisco Isaac
"O escrever, investigar e reflectir sobre videojogos não pode ser visto como um “hobby” ou desperdício de tempo"
[Se há alguém que se destacou no Twitter durante o Ragueby World Cup 2023, realizado em França, foi Francisco Isaac: fez um fervoroso e apaixonante relato do mundial de râguebi. Os interessados podiam acompanhar o seu trabalho nas publicações Online Fair Play e Planet Ragueby, assim como com intervenções especiais e cheias de emoção, na sua conta da rede agora conhecida como X. Francisco revela o mesmo entusiasmo por outro meio: os videojogos. Foram poucas as vezes que não destaquei um texto seu aqui na newsletter. Havia sempre algo de curioso a ler, algo muito pessoal, mas que espelha os mesmos sentimentos de quem lê. Por isso, pedi ao Francisco que me partilhasse a sua opinião sobre a importância pessoal, sociocultural ou até académica de escrever sobre videojogos. Um tema que vai de encontro ao propósito do Videojogos: Boas Leituras. Assim, os próximos parágrafos são da inteira responsabilidade do meu caro convidado Francisco Isaac.]
Videojogos… têm alguma utilidade para além de entreter quem os joga ou aprecia? Possuem algum valor palpável para a sociedade do ponto de vista cultural, histórico e/ou filosófico? Para mim, sim.
Antes de arrancar para uns quantos parágrafos para falar de como os videojogos podem ser importantes a nível social e o escrever sobre eles deveria ser estimulado, quero agradecer ao Filipe Urriça pela oportunidade de brincar no seu Substack. Foi uma das primeiras pessoas a me seguir da comunidade gamer portuguesa e é engraçado chegar a este ponto de camaradagem.
Posto isto... sempre vivi e respirei este mundo dos videojogos, como muitos que nasceram nos anos 80 e por aí adiante. Certos títulos moldaram a minha pessoa, ou, melhor, ajudaram-me a encontrar um rumo e perceber as minhas aptidões. Jogos como o Age of Empires, Age of Mythology, God of War, Tomb Raider, The Legend of Zelda, etc, forneceram-me mundos infinitos de imaginação e vontade de descobrir a verdade histórica, mesmo que essa verdade não fosse tão fantástica. Acabei por ingressar no curso de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (depois de uma pequena passagem por Direito, que nada tinha a ver com o que acontece nos filmes) e os videojogos tiveram um papel importante nisso.
Dentro desta instituição tive a oportunidade de escrever os meus primeiros textos sobre videojogos. Uns eram mais dedicados a tentar procurar as pontes que podíamos construir com a fantasia do gaming e o mundo real, e outros eram à procura das raízes históricas que podem ter levado a construir um jogo de certa forma.
Na altura a maioria dos meus colegas era pouco a favor destas ligações ou de “perder tempo” a tentar entrar no mundo digital... felizmente, uma boa minoria quis levar a coisa mais a sério com a construção do congresso internacional Mensageiros das Estrelas que trouxe os videojogos (e não só) para dentro da academia.
A taxa de participantes foi sempre alta, e foi extremamente divertido e importante ver professores catedráticos a ter vontade de apresentar comunicações interdisciplinares, ligando literatura, filosofia, cultura clássica, história, antropologia, história de arte e outras áreas a videojogos, cinema, televisão, BD’s e outro tipo de plataformas socioculturais.
Do nada, e por esforço de uns colegas do Centro de Estudos Anglísticos da FLUL, foi possível criar uma comunhão entre “mundos” diferentes, com ambos a perceber do potencial em desenvolver mais a fundo esta interdisciplinaridade.
Um ponto assente e que ouvi de vários investigadores que não estavam por dentro do mundo do gaming é que este possuía “afinal uma validade que pode vir a ser importante e um meio de fazer chegar as áreas de história e arqueologia a um público mais largo”. Para o público não tão familiarizado com o mundo académico, o elitismo é um vício desconcertante, levando a que seja criado um distanciamento entre investigadores e a maioria da população.
O desenvolvimento do tal congresso foi, felizmente, um tónico importante para quebrar com certos paradigmas e abrir novos horizontes. Contudo, ainda há um longo caminho para caminhar nesta legitimação de que os videojogos são uma área de estudo tão válida como uma Mona Lisa, Notre Dame ou o Código Hamurabi, merecendo ter o seu séquito (profissional) de pensadores, sejam escritores, criadores de conteúdo digital ou mesmo arquivistas.
Os videojogos, que se vão libertando daquela imagem de ser um mero “hobby” para quem não tem nada para fazer, precisam também de fazer a sua parte... isto é, a comunidade tem também de ser receptiva a todos aqueles que não são gamers puros e duros.
Existe algum clima de soberba de uns quantos que tendem a querer açambarcar o mundo dos videojogos como “seu” e que tratam o fã casual como um “falso” entusiasta, uma atitude bem exposta nas redes sociais. Felizmente, a maioria não age deste modo e tem uma atitude e comportamento mais quente, tentando conquistar novos jogadores ou pelo menos interessados em descobrir diversos jogos.
Talvez esta maioria percebe da utilidade dos videojogos e o escrever/pensar sobre eles deixe de ser só de uma franja da sociedade e passe a ser consumido por um público mais largo. O fugir ao “exótico” é decisivo para se estabelecer enquanto área, especialmente como âmbito profissional.
O jornalismo e a arte de escrever sobre videojogos ainda está longe de ser uma área plena e enraizada na sociedade, mas a verdade é que alguns avanços foram feitos nas últimas duas décadas, com mais plataformas de escrita e publicação. Por outro lado, o aumento de número de sites/publicações não significa que as condições e incentivos para antigos e novos escritores tenham melhorado.
Se falamos muito de que o arquivo disponível de videojogos disponível não é o melhor, por força de vários títulos estarem presos numa gaveta, o facto de ainda se entender como dispensável quem tem o trabalho de pensar e escrever tudo o que tem a ver com a área, é algo preocupante no que toca o documentar da sua história.
A importância sociocultural dos videojogos é nuclear, já que pode moldar comportamentos, informar pessoas, desenvolver pensamentos e neutralizar/piorar/melhorar certas atitudes societárias. O escrever, investigar e reflectir sobre videojogos não pode ser visto como um “hobby” ou desperdício de tempo e merece sim ser entendido como um passo importante na procura de uma sociedade melhor.
Há 300 anos atrás, os colecionadores de curiosidades eram vistos como “crianças com devaneios sem validade”, acabando por esses sujeitos dar início ao que viriam a ser os museus e museologistas décadas depois.
Esperemos que os videojogos sigam o mesmo caminho, assim como aqueles que vivem na sua comunhão.
Leituras
A crítica cultural nos videojogos (assim como em qualquer outra área da cultura) só acontece se houver material para tal. Infelizmente, ainda só são os triple A que movem o interesse dos editores, por isso são mais escassos os textos que incidem sobre a crítica. Algo que é incompreensível quando foram lançados milhares de jogos em 2023 na Steam. Ainda assim houve bons textos de várias fontes.
Apesar de ser uma experiência ritmada pela simulação, Dave the Diver é muito mais do que um mero simulador, mas sim um jogo que junta inúmeros elementos de simulação, RPG, aventura, acção; um prato cheio: um oceano de actividades, polvilhado com uma constante sensação de melhoria, de sede constante de saber mais, de explorar mais, de querer mais. - Tiago Marafona sobre Dave the Diver, Squared Potato
Para os lados da Microsoft, apenas sete anos depois do seu lançamento, Starfield consegue críticas positivas no Steam, com o seu update 1254.0964.214. As más línguas da comunidade sugerem que isto está ligado ao facto do bisavô Bill Gates ter finalmente adquirido a loja digital a Gabe Newell, depois de ele ter falecido em condições no mínimo duvidosas: diarreia explosiva. - "Feliz Ano Novo! O Ano é 2030" por Paulo Tavares, Future Behind
Mais engraçado, a minha mulher nunca joga nenhum jogo e já a apanhei a jogar com a minha filha quando ando a fazer outras coisas. Se isto não mostra que Super Mario RPG é um JRPG para toda a família, não sei o que mais é preciso. - Gonçalo Carvalho sobre Super Mario RPG, Rubber Chicken
Esse sentimento de exploração e a recompensa de subitamente encontrarmos algo que nos permite progredir no jogo são a razão principal de eu gostar tanto do género. Olhando para a big picture de um mapa completo percebemos a teia tecida pelos seus level designers de permitir que pontos de progressão no mapa nos “desbloqueiem” o acesso a outras zonas, numa rede estável e surpreendente. - Ricardo Correia sobre TEVI, Rubber Chicken
Naturalmente, que não bastou a mecânica narrativa, a conexão com o mundo e os personagens via narração off, acontece porque o guião está escrito de forma belíssima. Não estamos ali apenas a resolver um crime, ou a tentar perceber como fugir de um lugar, estamos realmente dentro do mundo pessoal e humano de cada personagem. - Nelson Zagalo sobre Alan Wake II, Narrativa eXp
Para ouvir
Mais um excelente podcast britânico, gravado por ex-colaboradores do Rock, Paper, Shotgun, onde exploram jogos independentes. Neste episódio, foram eleitos os melhores “Indie Games” de 2023. Talvez encontrem aqui boas propostas que foram ignoradas em outras publicações ou eventos.
Vejam isto
O design de videojogos é uma arte por si só. É precisamente um bom game design que vai ditar a boa ou má qualidade do jogo. A questão que o video levanta é pertinente. E fiquei a conhecer dois conceitos curiosos: bottom up design (que dá prioridade às mecânicas) e top down design (que dá mais importância a outros aspetos, como a narrativa). Vejam, é muito interessante.